16 janeiro 2014

Nada? Nada. Na-da. Absolutamente, nada.

A licença de maternidade já terminou faz tempo, mas o meu cérebro não está convicto. É que tive mesmo que colocar os dois pés no emprego novamente. Quando chegou a hora do biberão da manhã, estava no pára-arranca na autoestrada. E quando chegou a hora de vestir e depois brincar, estava à frente do computador a ver emails, metade dos quais eram spam. Mais tarde, na altura da birrinha de sono, sentei-me numa sala de reuniões a discutir se o logotipo era mais para a esquerda ou mais para a direita. Bem-vinda à vida como ela era, antes de ser esta.
Nunca tinha parado de trabalhar. Até punha as duas mãozinhas sapudas no fogo em como, ao fim destes meses, estaria mortinha por regressar ao trabalho. Para descansar. Agora, antes de adormecer, ponho gelo e faço compressas para acalmar este ardor nas mãos e no coração. É que vamos entranhando a maternidade e inventando que regressaremos, um dia, ao trabalho. Lá para 30 de Fevereiro.
Não que pretendesse fazer carreira maternal. Nem qualquer outra. Esta fantasia da carreira é como acenar com a cenoura à frente do burro: há os grandes burros, que adoram cenouras, e há os burritos, que se lhes acenarem com couve portuguesa, também comem. A carreira é como uma propaganda que a sociedade fez o favor de inventar num dia em que estava aborrecida a olhar para o ontem. Mas que até tem piada, pois aflige as pessoas sem evidentes dotes artísticos – 'Olá, tudo bem?'. Ou seja, a maioria dos cidadãos. Mas será que dá para fazer carreira de burro? Depois de chegar a cavalo, podemos ainda aspirar a ser unicórnios?
Estava a almoçar com uma amiga quando a filha de oito anos lhe telefonou, chorosa, por ter tido um Satisfaz num teste da escola. Só. Porque um simples Satisfaz, já não satisfaz. Nem aos pais, nem aos filhos. Já ninguém quer ser normal, pelo que chamar alguém de normal tornou-se num grande palavrão. Talvez seja mesmo a maior das ofensas nos dias de hoje: “Sai da frente, meu grande normal!”. Com os filhos passa-se o mesmo: nove meses a rezar para nascerem normais e o resto da vida à espera que revelem o seu corninho unicórnio.
É encantador escutar alguém dizer: “Tens é de fazer o que gostas!”. Só que a maioria das pessoas não sabe do que é que gosta. Ou até sabe, só que não é um gosto que alimente uma barriga, quanto mais duas ou três. Por isso, são muitos os que passam uma vida de rabo para o ar à procura da agulha no palheiro. É uma posição tramada para levar a vida.
Começa tudo na idade da creche com a pergunta tão enganadoramente pedagógica: “O que é que queres ser quando fores grande?”. Polícia, bombeiro, princesa. Nenhuma criança diz que quer ser técnico das finanças, caixa de supermercado ou traficante. São anos e anos de infância a soprar nos ouvidos dos miúdos a lengalenga de que têm de ser alguma "coisinha que se veja" quando crescerem. Os adultos adoram perguntar às crianças acerca das suas aspirações profissionais. Desconfio que é o subconsciente adulto a querer confirmar qualquer coisa como “eu não fui astronauta, este puto também não vai ser, isso é que era bom”.
Não querer ser nada, não estar numa categoria reconhecida socialmente, não é digno. O que, para muitos – 'Olá, outra vez!' -, é aquilo que melhor sabem fazer. Ser um grande Nada ou concluir um mestrado em Excelência do Nada não é valorizado. Estranhamente, pois acredito que quem o consiga fazer só pode ter uma inteligência superior. “Bom dia, queria falar com o senhor Dr. Nada, se faz favor”. “O senhor Dr. Nada agora não está a fazer nada, ligue mais tarde”. 
No fundo, continuamos todos na escola, com a nossa turma, horário e professor. Uns chegam a horas, a maioria nem por isso. Em vez de cromos trocamos cartões-de-visita e quem nos dá réguadas é o patrãozinho e não o senhor professor. Só o cenário é que mudou. Porque a mesada continua a não chegar até ao fim do mês. A minha filha, aos 7 meses, já tem um porta-moedas da Dora Exploradora. Com dinheiro lá dentro e tudo. É o que nos safa na farmácia. 
Tenho inveja da Laura. Porque ela não faz nada e eu faço tudo. Enquanto brinca no chão da sala, controlo os seus movimentos com um olho na miúda e outro no pai, uma mão no teclado do computador e outra no telefone, ambos os ouvidos estão sincronizados com a panela com água a ferver ao lume, a boca mastiga um grande “normal” de um chocolate e o meu cérebro elabora a lista mental de tarefas para o dia seguinte. Vá, quem é que me inveja a mim? São mais que argumentos para ter ciúmes da cabeça vazia de preocupações da miúda. Ciúmes dos gritos que dá quando lhe apetece e só porque lhe apetece. Dava uma unha do pé pela liberdade de não saber, pensar, fazer ou preocupar-me com nada durante… Ah! Mas dava uma unha do pé do meu marido.
Só que já não há mães que não fazem nada. Vou ter de explicar à Laura que a mãe faz mais do que nada. Que não posso entrar pela farmácia de Xabregas adentro e apontar uma pistola: “O leite ou a vida!” (até porque os funcionários de lá são todos amorosos). Que o centro de saúde só tem médico de família e que a pediatra dela é um luxo. Que as vacinas fora do plano de vacinação nacional não são pagas com cascas de banana. E o que é que isto lhe interessa a ela? Outro nada. Concluo que a vida é um somatório de nadas, o que reforça a minha ideia de que o Nada devia mesmo ser profissionalizado. Num instante tínhamos mais Nadas do que desempregados. “Então, estás desempregado?” “Nãoo! Estou sem fazer nada”.
Não ter, fazer ou saber nada é de uma simplicidade digna somente dos mais puros: os bebés. Porque o Nada é o terreno mais fértil para criar e para crescer. A verdade é que já sinto de peito cheio que a miúda é minha filha. E que está com graça. Os primeiros meses foram trabalhos pesados. Mas agora que começo a dominar a cria, tive de vir criar para outro lado. Alguém se vai rir muito com ela, porque para mim pouco ou nada vai sobrar ao final do dia. Mas se continuar a persistir nesta teoria de que o Nada é muito, vou ter todo o tempo do mundo para me rir com ela.

Sofia Anjos, 38 anos, directora de contas numa agência de comunicação, foi mãe pela primeira vez em Maio.  in P3

2 comentários:

Magui disse...

Ai que estas palavras hoje me encaixam como uma luva daquelas justinhas que tu usas para trabalhar!

M.P. disse...

Muito bom!