16 março 2013

Todo o tempo do Mundo...

Às vezes, torna-se complicado gerir em mim o trabalho e o ser Mãe. Torna-se numa luta entre o querer, o dever e o fazer. Quando saí para ir buscar a Francisca à Escola, depois de mais uma vez ter feito um febrão, pensei imediatamente em tudo o que tinha para fazer e no que havia de levar comigo para casa, contando já não voltar mais essa semana e quem sabe, uns dias da seguinte. Arrumei tudo e fui buscá-la. Passei a tarde nas urgências, com uma miúda bem disposta, na boa. Mas o pensamento de "e agora, como vou fazer o que preciso?" quando soube que estava doente, deu-me um aperto cá dentro. Às vezes, tenho muito medo de me tornar na Mãe que tive até uma certa idade. Na prática, não tive. Cresci pelas mãos do meu Pai. A minha Mãe, sempre a trabalhar, sempre ocupada, sem tempo, sem disponibilidade mental sequer para ouvir as minhas gracinhas, os progressos ao Piano, as aulas de dança, os meus primeiros amores falhados, as boas notas, as festas de aniversário a que ia, as zangas com as coleguinhas. Na altura e na proporção da idade, tudo dramas de faca e alguidar. Cresci pelas mãos do meu Pai. Cresci bem. Cresci muito na onda de brincar com tudo que não bonecas e tachos. A saber como funciona uma embraiagem, o que significa sangrar os travões e o que é um carter, por exemplo. A saber que ninguém é mais que ninguém e não se pisa, não se usa, não se trepa, seja porque motivo for. E a minha Mãe, continuava no seu trabalho. Quando nasci, trabalhava em dois sítios. Saía de um turno e entrava noutro. Depois, entrou na vida da Academia e o tempo ainda mais (me/lhe) escasseou. Houve alturas em que a via, com sorte, dois dias por semana. O tempo, para mim, que crescia ali, era reduzido, dado a conta gotas. E eu crescia e entrava na adolescência e como se sabe, ser adolescente é uma grande merda. É, é uma grande merda. O Mundo está todo contra nós, ninguém percebe o drama que se vive porque naquele dia nos apareceu uma borbulha. E eu, já mais crescida, comecei a fechar-me. O meu Pai é Homem pouco dado a carinhos, não lhe ia correr para o colo a dizer que o Mundo ia desabar porque as calças tinham ido para lavar e tinham de ser aquelas. Não lhe ia correr para o colo a perguntar o que estava de errado comigo, porque achava que nunca nada estava bem. As notas tinham de ser 100% porque pura e simplesmente, mais não dava. O Piano tinha de ser o mais sentido. A Dança tinha de ser a mais fluída, a mais graciosa. Tudo nos extremos da perfeição. Perfeição, perfeição, perfeição. Ao mm, à milésima, à mg do peso. A cara não estava bem, o cabelo não estava bem, a barriga não estava bem, as mãos não estavam bem. Tudo estava mal em mim. Tudo. Tudo. Tudo. Nunca nada era bom o suficiente, sempre a mesma sensação de falhar, sempre o mesmo sentimento de não ser boa o suficiente em nada e para nada. Sempre. Atacou-se o mais simples: eu, a mim mesma. Fechada, calada, presa na minha cabeça que depois me prendeu no meu próprio corpo. Livre, dentro de uma prisão, que eu mesma fiz. Um dia, os Professores começaram a reparar nas olheiras. No cansaço. No olhar perdido, triste. Na menina que já não ria, já não sorria, não gargalhava, não queria brincar, não queria nada, a não ser uma qualquer perfeição que aprendi à força ser utópica. Chamaram a atenção, perguntaram o que se passava. O meu Pai disse que nada sabia. Como poderia? Fechada. Calada. Em silêncio. Num sofrimento atroz que me desfez por dentro, bocadinho por bocadinho, com o passar dos dias, que deram lugar a semanas, que se transformaram em meses e que duraram anos. A minha Mãe, profissional de saúde, desvalorizou, coisas de adolescente. O tempo, o tempo que lhe faltava para me ver e não só me olhar. Um dia, os Professores ligaram a informar que tinha desmaiado e caído mal. Nesse dia, percebeu tudo. Viu-me e não olhou só. Nesse dia, a minha Mãe ligou à Terra. Nos anos seguintes, o tempo passou a ser gerido, balançado e não a pender só para um lado. Eu, juntei os bocadinhos todos do que fui, e das muitas lágrimas fiz de mim o que sou hoje, com um sorriso. Gosto muito da minha Mãe. Reconheço-lhe todo o mérito e esforço para estar onde está. Foi e é a melhor Mãe do Mundo, a que pode ser, a que sabia ser. É a minha Mãe. Mas de quando em vez, temo. Porque penso, muitas vezes, que não me mato tanto para nada. Que quero ir mais longe, mais além, mais qualquer coisa. E temo. E organizo-me. E relativizo. E faço contas às horas dos dias e das noites. Ainda é pequena, a minha Filha. Mas vai crescer. E eu quero que ela tenha a certeza que a Mãe tem todo o tempo do Mundo para ela. Para um abraço. Para ver a nova gracinha. Para ralhar. Para educar. Para saber como reage a algo. Para curar um dói-dói. Para passear na rua. Para saber o nome dos Amigos que a Vida lhe há-de trazer e o nome dos que a Vida lhe vai roubar. Todo o tempo do Mundo, Francisca. Porque em nenhum livro vem a receita mágica, porque faço o melhor que sei, que posso, que consigo. vou testando. Porque o meu colo, fisicamente a chegar ao limite que o ter-te impôs na minha resistência, no que aguento sem lágrimas nos olhos, existe porque tu, Francisca, existes. E nele, terás sempre todo o tempo do Mundo... 

8 comentários:

A nossa viagem.... disse...

De certeza que a Francisca vai adorar ler este texto um dia...

S. disse...

Esta podia bem ser a minha história. Tão bom tão bom, isto que escreveste.
Um beijinho

M.P. disse...

E agora eu fiquei lavada em lágrimas...
Digam o que disserem, o nosso tempo, os nossos mimos, o nosso aconchego, serão sempre o que de melhor poderemos dar aos nossos filhos. Quando nascem, aos 15 ou aos 30 anos. Os filhos precisam sempre que tenhamos colo para lhes dar.

Pitú disse...

Não sou psicologa, nem sequer lá perto, mas acho que acima de tudo é muito bom falares assim sobre ti, sobre o passado! E falares, na minha opinião significa seguir em frente! E teres a certeza que pelo menos esses erros não os vais cometer!

Joana14 disse...

Apesar de te ler sempre, é raro comentar. Hoje não podia deixar passar em branco... És uma grande mulher e uma grande mãe. Não é de hoje que o acho, mas achei que devia dizê-lo.
Um grande beijinho.

raquel disse...

Um beijo, querida Princesa.
Um beijo muito especial pela mãe, mulher, e profissional que és.
Parabéns por tudo isso!
A Francisca tem a melhor mãe que podia ter!

Magui disse...

Li este texto e fiquei tão tocada com ele que não fui capaz de o comentar... Esta também é muito a minha história (com a minha mãe)... Mas conto-te a minha história (com o meu filho), que tu já sabes! No dia que ele tinha febre e a cara inchada pensei "que chatice, não posso mesmo faltar ao trabalho e agora isto"... Tinha reuniões marcadas e muita coisa URGENTE na minha mão... Mas lá deixei o que tinha para o levar ao médico, exames e mais exames, tudo inconclusivo e a frase "tem que ficar uma semana em casa com ele"... Achei aquilo o fim, como é que ia gerir aquilo... No dia seguinte ouvi do meu médico a palavra cirurgia e aí o meu mundo parou, aí desliguei de tudo, aí deixei de ter reuniões importantes e enfiei-me num hospital uma semana, sem comer direito, sem dormir mais do que uma hora seguida e sem pensar sequer que precisava de vir cá fora respirar ar puro... A verdade é que passamos uma vida a tentar gerir, a perder para um lado ou para o outro, mas no dia que o mundo nos cai nas costas, sabemos perfeitamente qual é a prioridade!

Unknown disse...

Acabei de enxugar umas quantas lágrimas ao ler este texto.
Chorei, pois revi-me em muito com partes do texto que escreveu.
Chorei, porque me revi no seu texto, como se fosse eu a escreve-lo e no bem que fez ao escreve-lo, ao desabafar...