O cancro é um cabrão. Perdoem-me a palavra, mas não lhe conheço melhor adjectivo. O cancro é um cabrão da pior espécie, fazendo com que o próprio corpo se atraiçoe. Uma célula normal, um dia, deixa de o ser, por uma lista infindável de possíveis factores, de diversas origens. Uma célula que deveria ter sido eliminada pelo próprio corpo, permanece. Divide-se. Uma vez. E mais outra. Num processo que estupidamente poderia ser análogo ao do começo de uma vida, mas que é, infelizmente, o possível começo da morte. Divide-se, uma e outra e outra vez, a uma velocidade vertiginosa e aberrante. E o que era uma célula que deveria ter sido eliminada, agora são já muitas, aberrantes, alteradas, fatais. O cancro renova-se, reinventa-se. Destrói o equilíbrio do corpo que, numa ironia parva, o alimenta e o faz crescer, providenciando-lhe tudo o que precisa, quase como que a tentar que se sinta confortável e bem-vindo. Depois invade, vai à conquista de novos espaços para destruir, porque precisa de mais. E enquanto o faz, para sobreviver na sua aberração, vai matando o corpo que o sustenta, alastrando assim a sua vida impregnada de morte. O cancro não tem regras de boa educação. Não quer saber de outra homeostase que não a sua. Suga nutrientes. Cria novos caminhos para se alimentar, usando toda a maquinaria do saudável em seu próprio proveito. Num Mundo ideal, não existiria cancro, o corpo não se atacaria desta forma estúpida. Pessoas que fazem o mesmo que eu, já saberiam de cor as suas regras, os seus caminhos, a maneira como cresce e devora vida. Existiria tratamento 100% eficaz para cada tipo de cancro. Para cada um de nós, que somos todos tão diferentes. Mas o Mundo não é assim. Sabe-se o básico e um pouco mais. Sabe-se que altera isto e aquilo. Sabe-se como o faz. Estuda-se como o impedir, como o iludir. Escolhe-se este e aquele alvo. E tenta-se, na esperança de que corra bem. In vitro. In vivo. Clinical trials. Drogas novas, mais poderosas. Técnicas cirúrgicas mais efectivas a excisar. E espera-se. Na fé da ciência porque, ironicamente, a ciência exige ter uma fé profunda. Exige acreditar que um dia, se vai conseguir, mesmo que o cabrão do cancro se reinvente a cada passo e nos apanhe blindsided. Exige acreditar que cada pequeno passo é uma vitória para que nunca mais o cabrão do cancro ceife vidas cegamente. Muito menos a de crianças. Como o Rodrigo. Porque não é essa a ordem natural da vida. Mas o cabrão do cancro é um anarca. E o problema dos mortos, são os vivos, os que ficam com a dor da perda, com a dor da saudade. Sou Mãe e não suporto essa ideia na minha cabeça. Varro-a furiosamente, afasto-a, digo não. Não imagino. Não sei o que é. Sei que não é justo. Depois, cerro os dentes e visto a capa fria da ciência. E repito que um dia, um dia será possível. Porque não é justo.
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quero acreditar que tens razão!!! um dia será possivel! porque isto é injusto de mais.
ResponderEliminarNão só o caso do Rodrigo (ainda não estou em mim...) mas os já varios cases de familiares meus que não venceram...e um que luta ainda!
Quero acreditar que tens razão... por todos os Rodrigos do mundo... e para não perder mais uma pessoa que amo.
Minha querida Princesa,
ResponderEliminarQue bem descreves o quão anarca e "cabra" é esta doença.
Que bem descreves o tanto que me vai na alma.
Um beijo enorme, e que um dia o mundo possa ser um pouco mais perfeito...
Que texto tão certeiro... Tudo isso!
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